Uma lápide para Antônio da Silva
“Quantos dias, Joca? Dois, três, quatro?” E eu fiquei olhando aquela mão confusa, descoordenada com a fala, porque quando ela falou dois, três, quatro, eu pude ver apenas um dedo levantado, e foi nisso que fiquei pensando ao invés de pensar em algo decente para dizer a ela. “Fala alguma coisa, Joca, meu pai tá morrendo!”. Eu, que continuava vivo e mentiroso, menti, “ele vai ficar bom”, mas ela pareceu nem ouvir, porque se afastou, “o epitáfio, o que vou colocar no epitáfio?”, e aquela pergunta foi pior do que o “fala alguma coisa, Joca, meu pai tá morrendo”, porque eu não fazia ideia do que era aquilo. Rebati com outra pergunta, sem confessar a minha ignorância, porque eu continuava vivo, mentiroso e orgulhoso, “o que você está pensando em colocar?”, “não sei, talvez que ele era um homem bom, mas isso é pouco”, “mas tem que ser muito?”, “muito não, porque precisa caber na lápide, mas tem que ser muito em sentido, sabe?”, não sabia, “sei”.
Ficamos em silêncio, ela pensando na frase, eu torcendo para que ela não me fizesse pensar na frase. Até que se levantou do sofá para pegar um bloquinho e uma caneta que estavam ao lado da televisão, e, como criança que está sendo alfabetizada, escreveu em voz alta “um ho mem que a ma va a vi da”, olhou para mim com a caneta na boca, talvez esperando alguma contribuição, balancei a cabeça, em aprovação, dando por finalizada aquela frase que, muito provavelmente, está escrita em 90% das lápides dos cemitérios do mundo, em várias línguas diferentes. “Bonita”, eu disse, apertando os lábios, naquele bico de quem concorda.
“Vamos comigo?”, “vamos?”, “não adianta eu me enganar, Joca, os médicos já acabaram com nossas esperanças”, seu rosto foi murchando, “preciso fazer isso logo, mas não quero fazer sozinha”, pegou meus cinco dedos com os cinco dela, eu disse “vamos”, fomos.
Chegamos no lugar que fazia aquelas inscrições na lápide, que eu já não me lembrava o nome, porque era um nome tão estranho quanto ir com a namorada até um lugar estranho pedir a um cara estranho que gravasse uma frase batida em uma pedra fúnebre. Mas eu, estranhamente, parecia entender do que estava fazendo, e fui me adiantando ao balcão, “queremos gravar uma frase na pedra”, ela, estranhamente, ficou calada. O homem foi pegando papel e caneta, “o que vai ser?, aqui jaz?”, e eu, que continuava vivo, mentiroso, orgulhoso, estranho e espirituoso, bati o olho na letra de quem escreve convite de casamento e disse “jazz não, samba, aqui samba”, e ela, de dentro da sua tristeza, arrancou um sorriso, aprovando a lápide mais estranha e original que já se viu: Aqui samba Antônio da Silva.