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Mar de lágrimas

Era tanto o seu pesar,

que de seus olhos brotaram

peixes

de toda cor,

a nadar pela casa,

por baixo da mesa,

na pia,

dentro dos armários.

Até que um dia

ela chorou um barquinho.

Dentro dele,

um menino.

Então,

o choro cessou.

Siamesas

Dizem que tenho a cara 
da Elis,
a Regina.
Mas eu não sei cantar.
Se eu pudesse 
criar para mim 
uma cara própria,
que só lembrasse 
a mim mesma,
talvez se revelasse, 
de uma hora para outra,
alguma habilidade latente.
Quiçá até
uma aptidão para cantar,
igual à Elis,
a Regina,
embora eu não tivesse mais 
a cara dela. 

A poesia do outro

Não vejo graça em ler o que escrevo.

Igual comida que a gente mesmo faz,

não tem sabor,

falta tempero.

Gostoso é pousar nos escritos

alheios

O problema é que ler o outro

me dá gastura

uma sensação amarga.

Plágio é crime.

Outro dia, pedi ao amigo poeta

que escrevesse uma poesia minha

com a sua letra.

Em um papel branquinho,

com uma caligrafia rebuscada,

copiou os meus versos,

reproduziu minhas rimas.

E me deu aquela gastura,

a sensação amarga de não ter eu

aquela letra linda.

Que me sirva

Procuro algo que me sirva
uma blusa,
calça,
vestido,
na medida justa, 
bem alinhado
igual peça de alfaiate.
Procuro alguém 
que me sirva também,
na medida exata,
igual coisa de cinema,
para toda a vida,
ou que ao menos me sirva
um bom café da manhã na cama,
em um domingo de preguiça,
me abra um pote de geleia
ou troque uma lâmpada queimada.

Transparente

O menino negro, 
negro como a noite.
Mas era dia.
Os pés descalços 
sobre o chão quadriculado,
preto e branco,
na mesma proporção.
Passantes,
em desigual proporção,
não o viam.
A noite,
negra como o menino,
chegou 
e o engoliu.
Se ao menos ele sorrisse.
Na manhã seguinte,
o corpo negro esticado 
sobre a areia,
negro como a noite,
mas era dia.
A areia, 
quente,
 quase alva,
a refletir o sol.
O passar das horas
a torná-lo frio,
a negritude 
a mantê-lo 
transparente.

Nua

Não são apenas as roupas
que não me servem mais.
Fossem  
os vestidos curtos,
as blusas justas,
as calças apertadas
eu aceitaria.
Juro que aceitaria,
Mas não é só isso.
São os sonhos,
os planos, os desejos
que não cabem mais 

em mim,
que não se encaixam
como antes.
É como estar nua, 
completamente nua,
e sentir
que roupa ainda 
aperta.

Em Claro

Mais uma noite em claro,

apesar de toda escuridão,

no pequeno quarto

e dentro de mim.

Revivo lembranças

esmaecidas pelo tempo,

turvadas pelas lágrimas.

Um reviver sem vida,

um remorrer,

um remoer.

Remoo velhas memórias,

no sôfrego girar da manivela,

moendo e remoendo.

No giro silencioso do corpo frio

sobre a cama quente,

moendo e remoendo.

Metamorfose

Às vezes eu deleto

uma fração de mim mesma.

E me redesenho,

com novas linhas, outros traços.

Gosto de me rasurar, me desbotar, me colorir.

Por vezes, calco a caneta com força,

rasgo.

Tem horas que eu só rabisco,

por cima mesmo,

a lápis,

depois eu apago.

Parte de Mim

Pode revirar minhas gavetas,

analisar o que guardo,

espiar o que escondo.

Chafurde no meu lixo,

veja os restos do que me serviu,

cate tudo o que joguei fora.

Vele meu sono,

testemunhe meus sussurros,

ouça meus gemidos.

Persiga meus passos.

interrogue meus amigos.

À espreita,

vigie a minha solidão.

Ainda assim,

não me conhecerá

por inteiro.

Nem tudo de mim está na superfície.

Ah, o amor

Procurei o amor

Como quem procura os óculos,

Com eles já na cara.

Encontrei, bem mais tarde,

Um outro amor,

Como quem descobre,

Entre o encosto e o assento,

Uma armação retorcida

E duas lentes quebradas.

Meu nome

Gritaram por Joana
e eu só soube que era eu
porque notei que me olhavam,
enquanto gritavam
Joana,
um nome que eu nem sabia.
Gritaram de novo e 
esperaram que eu agisse 
como Joana,
mas eu não sabia com Joana
agiria.
Fiquei ali parada,
esperando que se esquecessem 
que eu era Joana
ou que eu, 
de repente,
me lembrasse.

 

Que me Amasse

Poderia desejar que me

amasse,

como meu pai amou minha mãe,

um dia.

Um amor que virou proposta

e acabou sem propósito.

Mas, não,

não pediria que me amasse,

prefiro sugerir que me

amasse

contra a porta do armário,

junto à pia da cozinha.

Prefiro que amasse

minha roupa bem passada,

meus lençóis de linho 400 fios,

minha boca contra a sua,

seu corpo sobre o meu.

Cacos

Se eu quebro um copo,
é só um copo
quebrado.
Mas se,
ao recolher os cacos,
eu me corto,
não é mais só um copo
quebrado,
é dor,
é ferida,
que talvez demore a cicatrizar.
Hoje quebrei 
um copo,
talvez fosse o último.
Cuidado ao entrar
na cozinha,
o copo já não é mais um 
copo,
e eu não recolhi os cacos.

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