
Mar de lágrimas
Era tanto o seu pesar,
que de seus olhos brotaram
peixes
de toda cor,
a nadar pela casa,
por baixo da mesa,
na pia,
dentro dos armários.
Até que um dia
ela chorou um barquinho.
Dentro dele,
um menino.
Então,
o choro cessou.
Siamesas
Dizem que tenho a cara
da Elis,
a Regina.
Mas eu não sei cantar.
Se eu pudesse
criar para mim
uma cara própria,
que só lembrasse
a mim mesma,
talvez se revelasse,
de uma hora para outra,
alguma habilidade latente.
Quiçá até
uma aptidão para cantar,
igual a Elis,
a Regina,
embora eu não tivesse mais
a cara dela.
A poesia do outro
Não vejo graça em ler o que escrevo.
Gostoso é pousar os olhos nos escritos do outro.
Igual comida que a gente mesmo faz,
não tem sabor,
falta tempero.
O problema é que ler o outro
às vezes me dá gastura.
Quando a coisa é boa mesmo
dá uma sensação amarga de desejar ter escrito aquilo
e não poder mais.
Plágio é crime.
Outro dia, pedi ao meu amigo poeta
que escrevesse uma poesia minha
com a letra dele.
Em um papel branquinho,
com uma caligrafia rebuscada,
copiou os meus versos,
reproduziu minhas rimas.
Quando li,
deu aquela gastura,
a sensação amarga de não ter eu
aquela letra linda.
Metamorfose
Às vezes eu deleto
uma fração de mim mesma.
E me redesenho,
com novas linhas, outros traços.
Gosto de me rasurar, me desbotar, me colorir.
Por vezes, calco a caneta com força,
rasgo.
Tem horas que eu só rabisco,
por cima mesmo,
a lápis,
depois eu apago.
Nua
Não são apenas as roupas
que não me servem mais.
Fossem
os vestidos curtos,
as blusas justas,
as calças apertadas
eu aceitaria.
Juro que aceitaria,
Mas não é só isso.
São os sonhos,
os planos, os desejos
que não cabem mais
em mim,
que não se encaixam
como antes.
É como estar nua,
completamente nua,
e sentir
que roupa ainda
aperta.
Antes que morra a esperança
Quando nasci,
entre mim e a morte
havia um abismo.
Hoje, há apenas
um buraco
onde minha mão
alcança o fundo.
Não quero morrer,
mas morrerei,
certamente,
alguns segundos antes
da esperança.
Esperando que
não se morram de mim
os que tanto amei.
Em Claro
Mais uma noite em claro,
apesar de toda escuridão,
no pequeno quarto
e dentro de mim.
Revivo lembranças
esmaecidas pelo tempo,
turvadas pelas lágrimas.
Um reviver sem vida,
um remorrer,
um remoer.
Remoo velhas memórias,
no sôfrego girar da manivela,
moendo e remoendo.
No giro silencioso do corpo frio
sobre a cama quente,
moendo e remoendo.
Alma Sufocada
Rasgaria o próprio peito
se seu sangue o alimentasse.
O leite, tão justo, conveniente, não vinha,
não tinha.
O choro a entrar pelos ouvidos
e a estrangular-lhe a alma.
Gritos estridentes,
de mãos fortes, firmes,
a esmagar seu coração,
a sufocar sua esperança,
sua espera seca, vazia.
Daria a própria vida,
se assim o salvasse.
Vidas que se dariam,
se perderiam,
sem que se desse nada em troca.
Abandono
Todos me abandonaram.
Levaram com eles o que conheciam de mim,
o que acreditavam que eu fosse,
o que imaginavam que eu deveria ser.
Não há mais ninguém aqui que eu conheça.
Nem eu mesma.
Parte de Mim
Pode revirar minhas gavetas,
analisar o que guardo,
espiar o que escondo.
Chafurde no meu lixo,
veja os restos do que me serviu,
cate tudo o que joguei fora.
Vele meu sono,
testemunhe meus sussurros,
ouça meus gemidos.
Persiga meus passos.
interrogue meus amigos.
À espreita,
vigie a minha solidão.
Ainda assim,
não me conhecerá
por inteiro.
Nem tudo de mim está na superfície.
Que me sirva
Procuro algo que me sirva
uma blusa,
calça,
vestido,
na medida justa,
bem alinhado
igual peça de alfaiate.
Procuro alguém
que me sirva também,
na medida exata,
igual coisa de cinema,
para toda a vida,
ou que ao menos me sirva
um bom café da manhã na cama,
em um domingo de preguiça,
me abra um pote de geleia
ou troque uma lâmpada queimada.
Transparente
O menino negro,
negro como a noite.
Mas era dia.
Os pés descalços
sobre o chão quadriculado,
preto e branco,
na mesma proporção.
Passantes,
em desigual proporção,
não o viam.
A noite,
negra como o menino,
chegou
e o engoliu.
Se ao menos ele sorrisse.
Na manhã seguinte,
o corpo negro esticado
sobre a areia,
negro como a noite,
mas era dia.
A areia,
quente,
quase alva,
a refletir o sol.
O passar das horas
a torná-lo frio,
a negritude
a mantê-lo
transparente.
Vento
O vento chegou num alvoroço.
Ventania de embaralhar cabelos,
arribar saias, tremular bandeiras.
Com mais fúria, quebrou vidraças,
arremessou-me ao chão, encheu minha boca de poeira.
Ergui-me, olhos cerrados, braços abertos, deixei que ele me levasse.
Então, eu voei.
Que me Amasse
Poderia desejar que me
amasse,
como meu pai amou minha mãe,
um dia.
Um amor que virou proposta
e acabou sem propósito.
Mas, não,
não pediria que me amasse,
prefiro sugerir que me
amasse
contra a porta do armário,
junto à pia da cozinha.
Prefiro que amasse
minha roupa bem passada,
meus lençóis de linho 400 fios,
minha boca contra a sua,
seu corpo sobre o meu.
Inimigos
Poderiam,
acabada a batalha,
olharem-se nos olhos e
apertarem as mãos?
Trocarem acenos
no recém-desfeito
campo de guerra?
Anunciado o fim,
tirariam os dedos do gatilho,
refreariam no ar
as mãos em punho,
recolheriam à cinta
seus cacetetes?
Quantas vidas poupadas
Se o confronto acabasse um minuto antes.
Poderiam inimigos
não se odiarem de morte
em vida?
Teriam alguma vez se odiado?
Poderiam esquecer as humilhações
e perdoar
os tantos futuros roubados?
Poderiam?
Desejo
Postou-se ao meu lado,
a respiração acelerada,
ansiosa.
Desejava que eu lhe notasse
a presença,
que eu erguesse a cabeça e
lhe encarasse os olhos,
lhe fitasse os lábios.
Mas retive minha atenção
aos seus sapatos,
que pouco a pouco se afastaram,
deixando para trás
a respiração acelerada, ansiosa,
que talvez fosse minha desde o início,
ignorando o desejo
que talvez fosse meu,
de que me notasse e
me encarasse os olhos,
me fitasse os lábios.
Querência
A querência chega a assustar-me.
Constante.
Querência de afeto,
de saber,
de ter.
Querência de ser,
sem saber o que se quer.
Um insistente querer de doce.
Com o doce ainda na boca,
quero outro.
Querência de adoçar também
a mente,
pinçar lembranças,
enganar a memória.
Querência de gritar o que penso,
de chorar o que sinto.
De estar sempre em outro lugar.
O chato querer de fazer sentido,
de ter sempre nexo.
Uma querência do próprio querer,
pra se querer sempre alguma coisa,
eternamente.
Ah, o amor
Procurei o amor
Como quem procura os óculos,
Com eles já na cara.
Encontrei, bem mais tarde,
Um outro amor,
Como quem descobre,
Entre o encosto e o assento,
Uma armação retorcida
E duas lentes quebradas.
Meu nome
Gritaram por Joana
e eu só soube que era eu
porque notei que me olhavam,
enquanto gritavam
Joana,
um nome que eu nem sabia.
Gritaram de novo e
esperaram que eu agisse
como Joana,
mas eu não sabia com a Joana
agiria.
Fiquei ali parada,
esperando que se esquecessem
que eu era a Joana
ou que eu,
de repente,
me lembrasse.
Cacos
Se eu quebro um copo,
é só um copo
quebrado.
Mas se,
ao recolher os cacos,
eu me corto,
não é mais só um copo
quebrado,
é dor,
é ferida,
que talvez demore a cicatrizar.
Hoje quebrei
um copo,
talvez fosse o último.
Cuidado ao entrar
na cozinha,
o copo já não é mais um
copo,
e eu não recolhi os cacos.
Temporais
Perguntei sobre o tempo,
disseram-me que à tardinha esfriaria,
que dali para frente seria
assim,
cada dia um pouquinho
mais frio.
Mas era da passagem
do tempo
que eu perguntava.
Quanto tempo ainda
para nos vermos?
Talvez já esteja quente de novo,
no nosso reencontro.
Provavelmente,
um dia de forte temporal.
Aqui dentro,
faça frio ou calor,
continua
chovendo.
Talvez eu esteja me acostumando
às tempestades