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Show Time

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— Nós vamos matar a Elise — avisa Sarah, assim que a imagem de Lori surge em sua tela.
— O quê? Como assim? — pergunta Lori, franzindo a testa. — Mas ela ainda vai ser um personagem ativo? 
— Lógico que não, Lori, a restrição continua.
— Mas o enredo já não tava aprovado?
— Não tem nada de errado com o enredo. Você só precisa mudar o final.
— Só mudar o final? — Lori aumenta a voz, e seu tom é de deboche.
— É coisa simples. Troca a parte em que ela consegue fugir do marido por uma empolgante cena de assassinato Os usuários vão enlouquecer. 
Lori encara a tela sem disfarçar a raiva estampada em seu rosto. 
— Eu não posso matar a Elise. Você sabe que já abri mão de muita coisa. Desta vez eu queria fazer um roteiro sem agressão, traição, essas coisas. E o marido não era para ser um psicopata. 
— Por isso não aceitaram sua primeira sugestão — rebate Sarah, ignorando o olhar de ódio sobre ela. — São ordens lá de cima.  
— Então eu faço novos personagens e a gente deixa a Elise e o Luca para outro roteiro.
— Ficou louca, Lori? A equipe já está trabalhando no design. É só o final. E eles têm pressa.
— Não acredito — Lori resmunga, balançando a cabeça.
— O You Celebrity anunciou um lançamento e queremos disparar o seu antes. Ah, o nome agora é “Show Time”, e isso tem que aparecer na cena final. Bye.
Quando Sarah some da tela, Lori coloca as mãos sobre o rosto e abaixa a cabeça até encostar a testa sobre a mesa de vidro. Então, a imagem de um garotinho correndo atrás de uma bola surge em sua mente e ela não consegue evitar que seus olhos se encham de lágrimas. Levanta a cabeça e a chacoalha como se quisesse espantar a terrível lembrança. “Você não pode cair de novo, Lori”, pensa, enquanto enxuga o rosto. Inspira fundo e dá novos comandos ao computador:
— Abrir arquivo bad choices versão final.
Num ritmo frenético, Lori dita e apaga frases até concluir o novo desfecho para o seu roteiro. Solta um longo suspiro, fica em pé e, já de costas, dá o último comando:
— Enviar arquivo Show Time para Sarah, Character Alive.
Então, Lori vai até a sala e encontra o marido cochilando no sofá. Senta-se ao lado dele e dá um cutucão em sua perna.
— Hã?
— A Sarah lá da produtora ligou.
— E? — pergunta Dan, coçando os olhos.
— Pediu para alterar o final e matar a Elise, minha melhor personagem.
— Não quer matar, não mata. — Dan se ajeita no sofá. — Não é você a roteirista?
— Não é assim, você sabe. Quem manda é a produtora. Quer dizer, os usuários. E os pervertidos só querem acessar os personagens assassinos. Quanto mais sangue, melhor. 
— Mas o seu último virtual teve até serial killer. — desafia Dan, enquanto boceja. — Qual é o problema agora? 
Lori o encara, irritada.
— Eu não me importo com os assassinatos nos virtuais. Não é esse o ponto. 
— Hum.
— O problema é que desde o caso da Scene Extreme, tem aquela restrição que impede que os personagens que morrem no virtual sejam acessados. Ou seja, a Elise não vai mais ser um personagem ativo se for assassinada.
— Ah, entendi.
— Pra mim isso é bobagem, o cara já devia ser um esquizofrênico. Mas a produtora não se arriscaria. E ela nem conseguiria a licença. 
Lori se levanta e caminha pela sala, gesticulando. Dan tenta acompanhar seus gestos e seu raciocínio. 
— A verdade é que agora nenhuma produtora está matando protagonistas, só secundários. A morte da Elise será um apelo e tanto. 
— Money, baby. — Dan se levanta. — Vamos dormir que tá tarde. — Dá um beijo na testa da esposa e se arrasta escada acima. 
Lori pensa em dizer que não está com sono e sugerir que abram um vinho, mas percebe que Dan não aguentaria a primeira taça. 
Na cama, o sono demora para chegar. As imagens da virtual e a lembrança da criança atravessando a rua atrás de uma bola se revezam na mente de Lori, se repetindo noite adentro. 

Quando “Show Time” fica pronto, Lori recebe em casa um pequeno dispositivo com a versão teste para encarnar Owen Walsh, o marido assassino. Assim que ela coloca o dispositivo na têmpora, seu cérebro começa a receber impulsos que a levam a agir de acordo com o roteiro programado, vivenciando as experiências e sensações da personagem ativa. Apesar de imersa na trama, Lori consegue reconhecer e antever os eventos criados por ela, retornando repetidas vezes, como observador, às cenas onde Elise e Luca compartilham momentos de carinho. Quando finalmente se aproxima do momento do assassinato, Lori hesita e retrocede para a passagem anterior em que, na pele de Owen, ela observa Elise preparando o café da manhã. Ele está à espreita, vigilante, e a esposa não percebe a sua presença. 
Luca, o filho de três anos do casal, entra pela porta lateral e corre na direção da mãe, que logo se agacha para receber seu abraço. 
— Dormiu bem, meu amor? — pergunta, enquanto alisa o rosto da criança. 
O menino faz que sim com a cabeça. 
— Laranja ou maçã? 
— Maçã, mamãe.
Elise coloca o suco em um copo de plástico e o entrega ao filho.
— Vai se sentar. Leva com cuidado! Você quer torrada?
— Quero, duas — responde, enquanto caminha para a mesa.
Owen coloca um falso sorriso no rosto e entra na cozinha, sentando-se ao lado de Luca.
— Quem quer dormir na casa da vovó hoje?
— Eu! — grita o menino, levantando o dedo indicador.
— Não precisa, já falei — diz Elise, com a voz levemente tremida.
— Como não? Temos que comemorar nosso casamento feliz, querida. — Então, ele se vira para a criança. — Você quer dormir na vovó Lucy? 
— Eu quero, eu quero! Posso mamãe? — pergunta, balançando as perninhas.
Elise vai até a mesa, coloca as torradas no prato e se agacha para alcançar os olhinhos azuis de Luca. 
— Claro que pode. Te amo, meu filho.
— Também te amo, mamãe.
Então, Lori dá o comando para sair do virtual:
— Sair.
Após alguns instantes de confusão e desorientação, ela recobra a consciência e leva as mãos ao rosto, tentando sufocar o choro. Abraçando o próprio ventre, ela se contorce na poltrona, num pranto seco, rouco. Quando a compaixão se torna raiva, Lori se sente pronta para vivenciar a cena final. Na pele de Owen, ela entra no quarto e encontra Elise se arrumando para irem jantar.
— Show Time! — grita Owen, com os olhos estalados e gestos exagerados, exibindo uma faca na mão direita. Seu coração saltita dentro do peito ao ver o olhar de pavor da esposa, que grita e corre em direção ao banheiro. Owen se coloca rapidamente na sua frente, agarra seu braço e a arremessa com violência contra o piso. Aos berros, Elise engatinha, tentando se afastar do marido, mas ele chuta suas costas, fazendo com que ela bata o queixo no chão e comece a sangrar. Ela implora por sua vida, e Owen sente prazer ao ouvir seu desespero. Apoiando os braços no chão, Elise dá impulso para se levantar, mas Owen entrelaça os dedos em seus cabelos e puxa sua cabeça para trás, enquanto firma, com força, o joelho em seu quadril. Ouve-se um estalo, e ela solta um gemido. Owen chega bem perto e a fareja, sentindo o cheiro do medo que exala de seu suor e, com a boca encostada ao seu ouvido, pede silêncio. — Shhh. — E sorri, debochado. Elise engole os gritos, mas não os gemidos. Num movimento brusco, ele ergue a cabeça da esposa em um tranco e passa a faca em seu pescoço, de um lado ao outro, de forma lenta e precisa. Ela engasga com o próprio sangue, enquanto seu corpo se debate.
Assim que o virtual acaba, Lori é desconectada, mas, por alguns instantes, sente que ainda segura a faca ensanguentada e comprime, com o joelho, um corpo que se debate, indefeso. Batidas insistentes na porta a trazem de supetão à realidade. Ela olha para as mãos, balança a cabeça e corre para abrir a porta.
— Tá tudo bem? Você não respondia. Por que trancou a porta? — pergunta Dan, visivelmente aflito.
— Não vai começar, eu tô bem, você precisa confiar em mim. — responde, incomodada com o excesso de preocupação do marido. — Eu estava testando o virtual.
Constrangido por sua reação exagerada, Dan se esforça para parecer tranquilo e descontraído.
— E aí, como foi? Não me diga que deu um jeitinho de encarnar a Elise?
Lori fica pensativa por um instante e, então, deixa um sorriso despontar em seus lábios.
— Você me deu uma ideia — fala, estalando os dedos no ar.
— Dei?
— O jeitinho, tem um cara que dá um jeitinho.
— Que cara? Que jeitinho?
— Um hacker. A Jana falou que ele consegue destravar personagens.
— Tá louca? E se for perigoso mesmo?
— É só eu sair antes da cena final — diz, com ar de superioridade, dando um tapinha no ombro do marido. 
Dan ameaça expor seus argumentos para persuadi-la a desistir, mas Lori se volta para o computador e ordena que ele faça contato com Jana. 
— Preciso de sua ajuda! — diz, sem rodeios, assim que a imagem da amiga aparece.
— Oi, Lori, boa noite pra você também.
— Aquele hacker. Passa o contato dele.
— O quê?
— O com nome daquela bala antiga.
— O Jelly Belly?
— Isso. Ou você conhece outro hacker?
— O que você quer com ele?
— Quero que ele destrave uma personagem pra mim.
— Do seu virtual? Tá pronto?
— Tô com a versão teste, quando lançar eu te empresto. Mas me dá logo esse contato.
— Calma. — Silêncio. — Mandei pra sua lista.
— Tchau.
— Espera! Tem a senha.
— Senha?
— Sim, você precisa falar “Eu gosto da azul clara”.
— Hã?
Jana dá o comando para desligar a comunicação, e Lori repete a senha para si mesma para memorizá-la. Então, faz mais uma ligação. 
Assim que o hacker atende, Lori vê um fundo preto com uma linha azul surgirem em sua tela.
— Senhor Belly? — pergunta, meio atrapalhada, já arrependida de ter se referido a ele daquela maneira estúpida.
— A senha — a linha azul se movimenta.
— É... Eu gosto da... azul clara?
— Quem está falando e como conseguiu meu contato?
— Jana. Não, Lori. Eu sou a Lori. A Jana me deu seu contato — responde, imaginando que deveria ter inventado um nome fictício também.
— Jana?
— Do Kubo. A Jana do Kubo.
— Ah. Do que precisa?  
— Quero que destrave um personagem.
— Tem o arquivo? Está protegido, licenciado? Se estiver, vai custar bem mais e vai demorar.
— Não. Eu tenho o arquivo teste, aberto, sem proteção — diz, empolgada.     
— Traga aqui amanhã.
— Onde?
A linha azul escreve um endereço na tela, e a comunicação acaba antes que ela pergunte quanto aquele servicinho ilegal vai lhe custar. 
 
No dia seguinte, Lori dirige por quase uma hora antes de estacionar no local indicado. Um portão de madeira se abre assim que ela sai do carro, e ela o atravessa olhando para os lados, como se fosse uma criminosa. Dentro da casa, organizada e bem decorada, o hacker a aguarda, em pé, no meio da sala. Ele é um homem esbelto e bem-vestido, o que causa estranhamento em Lori, que imaginava que o apelido Jelly Belly se referisse não apenas à bala, mas a uma barriga mole e saliente caindo para fora da calça. Após um silêncio constrangedor, eles se sentam frente a frente em uma mesa redonda, e Lori se apressa para expor sua urgente necessidade. Depois, tenta ir mais além:
— Tem jeito de dar liberdade pra personagem? 
— Livre-arbítrio? — Jelly pergunta, soltando uma sonora gargalhada.
Lori fica sem graça.
— Isso não é pra agora. Mas estou trabalhando nisso — responde, retomando sua pose de homem de negócios.
Após chegarem a um acordo, Lori faz uma transferência não identificada que desfalca sua conta além do que ela imaginava. 

Na data prometida, Lori recebe o dispositivo em sua casa. Entra no escritório, tranca a porta e inicia a sua experiência na pele de Elise. Pouco antes do fatídico final, Lori vivencia a passagem em que Luca entra na cozinha e corre na direção da mãe, que logo se agacha para receber seu abraço, desejando que o momento se estendesse por mais alguns minutos. 
— Dormiu bem, meu amor? 
O menino faz que sim com a cabeça. 
Elisa olha para a porta e vê o marido os observando com um olhar de reprovação e ódio. Surpreso, Owen recua, se escondendo atrás da parede. Elise fica paralisada, confusa.
— Maçã, mamãe — fala Luca, olhando para a mãe, que mantém os olhos fixos na porta.
Owen volta a espiá-la, agora com um sorriso sarcástico. 
— Sair! — Ela dá o comando para sair do virtual, mas continua na cozinha, em pé ao lado da pia. Abre a gaveta e pega uma faca, a maior que seus dedos trêmulos conseguem tatear. 
— Quero, duas — diz o menino, levando um copo imaginário até a mesa.
Owen entra na cozinha com o passo apressado na direção de Elise.
— Sair! Sair!!! — ela grita, desesperada.
— Eu! — diz o menino, levantando o dedo indicador.
Já bem perto da esposa, Owen encosta a boca em seu ouvido:
— Show Time!
Elise tenta cravar a faca na barriga do marido, mas ele a impede, segurando firme em sua mão antes que a lâmina o atinja. 
Na mesa, Luca grita, balançando as perninhas:
— Eu quero, eu quero! Posso mamãe?
Owen se distrai com os gritos do menino, e Elise aproveita para pegar uma das jarras de suco e golpear a cabeça do marido. Ele cai no chão, gemendo.
 Elise avança até a mesa, pega o filho no colo e corre para fora da cozinha.
— Sair! Socorro! Sair!
— Também te amo, mamãe — fala Luca.
Ela sobe as escadas, pulando degraus.
— Sair! 
Ouve os passos apressados indo atrás dela.
— Sair! Pelo amor de Deus! O que aconteceu?Sair!
Entra no escritório e tranca a porta. Seu coração parece que vai sair pela boca. Tentando controlar o tremor das mãos, pega a arma escondida em cima do armário. Fora do escritório, um silêncio assustador. Com o revólver carregado, ela coloca o dedo no gatilho e mira para a porta. Então, olha para trás para ver se o filho está seguro. Não o encontra e começa a chamar por ele, revezando sua atenção na porta e na busca pela criança. De repente, ouve socos na porta e a voz do marido ordenando que ela a abra. Suas mãos estão trêmulas e o suor chega a escorrer pelo rosto. Grita pelo filho, percebendo que a porta está a ponto de ser arrombada. Um forte golpe finalmente a abre. Ela coloca o esposo na mira e atira três vezes, uma bala atinge o tórax e as outras duas, o braço. Ele cai no chão, se contorcendo de dor, e ela avança em sua direção:
— Cadê o Luca. Cadê ele? O que você fez com ele?
— Que Luca? — A voz sai com dificuldade.
— Nosso filho, meu Deus do céu, nosso filho!
O sangue começa a escorrer pela boca e ele quase se engasga para responder:
— Nosso filho morreu, Lori. O Johnny morreu. O que você fez?

 

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