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Em Óleo sobre Tela

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Um quadro. Eu e o Carlos, lado a lado, retratados em tinta a óleo sobre uma tela de 120 centímetros de largura por 80 de altura. Segundo o Juninho, nosso filho, um belo presente pelos nossos 20 anos de casamento. 
A minha reação inicial foi de desconcerto. 
— Como assim nosso? De nós? Eu e seu pai lá, no quadro?
Ele só balançou a cabeça e levantou as sobrancelhas, como se me parabenizasse pela óbvia constatação.
— Não, filho, não precisa. 
— É claro que precisa. É meu presente pra vocês. 
Ele parecia decidido, mas fiz uma nova tentativa, apelando ao seu bolso.
— Isso é caro, Juninho, e você acabou de começar o estágio.
— Relaxa, mãe, o pintor é pai do Lelo, vai fazer um preço legal. Já tá tudo certo.
— Tá bom, Juninho, a gente aceita — disse em meu nome e em nome do Carlos, que permaneceu em silêncio o tempo todo, sem reação nenhuma, como se sua cara não fosse ocupar a metade da tela que lhe caberia.
Durante o jantar, mal concentrei-me na comida e na conversa pouco animada à mesa. Estava pensando na tal pintura.
— Vai ser de rosto?
— Rosto?
— A tela. Eu e seu pai.
— Isso o seu Silveira vai ver.
— Silveira?
— O artista. João Silveira. Ah, ele vem sábado pra fazer a foto.
— Mas é foto ou tela?
— Tela, mãe, é tela. O Lelo falou que ele gosta de conhecer os modelos primeiro e fazer a foto ele mesmo, aí ele pinta copiando a fotografia, uma coisa assim.
— Modelo — repeti e ajeitei o cabelo como se já estivesse diante da câmera.
— Que hora ele vem? — perguntou Carlos, manifestando-se pela primeira vez sobre o assunto.
— Às nove.
— Esquece, sábado tenho futebol.
— Pô, pai, cancela o futebol um dia, é meu presente pra vocês — disse o Juninho, jogando o presente novamente em nossa cara.
O Carlos não respondeu, mas bufou, e eu me fiz, repentinamente, de contente.
— Vai ficar lindo, filho, obrigada. 
Nos três dias que faltavam para a visita do tal artista, revirei o armário em busca da roupa perfeita que ficaria para a posteridade naquela tela. Não me importei muito com a calça porque tinha para mim que seria um retrato do busto para cima. A blusa, sim, deveria ser perfeita. 
Quando sábado chegou, e o pintor tocou a campainha, eu vestia uma bela camisa de seda azul e uma calça preta, e o Carlos, uma camisa branca riscadinha de azul, no mesmo tom, e calça cinza. Estávamos combinando.
João Silveira, chegou nos encarando profundamente, analisando nossos rostos  sem pudor, como se fossemos já um mero retrato. Tentei dissimular o constrangimento, mas o Juninho, do sofá, zombava da minha timidez. Enfim, além de nos fitar descaradamente durante todo o tempo em que esteve em casa, nos fez perguntas esquisitas sobre nossa vida particular, levantando a sobrancelha sempre que ouvia a resposta. Quando soube dos meus 44 anos, ergueu as duas, e não entendi o que aquilo significava. 
Ao fim do interrogatório, pegou a máquina fotográfica e pediu que nos colocássemos à frente da parede branca. Juninho levantou-se do sofá e veio nos ajeitar, talvez eu parecesse mesmo sem jeito. Quando o artista mirou a lente em nós, eu não sabia que cara fazer, se sorria, se ficava séria, se entortava um pouco a cabeça. 
Repreendendo-me por não ter deixado um espelho à mão, pensei em pedir ao Juninho que fosse buscar um no meu banheiro, mas o artista interrompeu minha iniciativa solicitando que eu e o Carlos aproximássemos as cabeças.
— Mas sem encostá-las! — gritou. 
Fiquei tão preocupada em não tocar a cabeça do Carlos que quando veio o flash nem percebi se estava sorrindo.
João Silveira olhou o visor da reflex e deu pequenas balançadas na cabeça, mas não consegui decifrar na hora se aquilo era um assentir de aprovação. 
— Quer fazer outra, não sei se sai bem? — perguntei, ajeitando os cabelos.
— Não, senhora, gosto do primeiro click. Se a gente fica refazendo, vai perdendo a naturalidade.
— Mas e se eu saí de olhos fechados? Posso ver? — Agitei as mãos, ansiosa.
— Os olhos estão abertos, pode ficar tranquila. Está tudo certo.
Virei para o Carlos, para suplicar com o olhar que ele me ajudasse a convencer o artista a nos mostrar a fotografia, mas ele já estava de costas para mim, indo em direção à cozinha. Soltei um suspiro desanimado e apressei-me em questionar quanto tempo demoraria para vermos o quadro pronto, já que até então não havíamos tido a chance nem ao mesmo de colocar os olhos na fotografia. 
— Em um mês. Entro em contato com o Carlos Júnior — respondeu enquanto dirigia-se à saída, levando consigo seu único clique e deixando comigo uma ansiedade quase incontrolável. 
Na semana seguinte, cheguei a sonhar com o tal quadro, horrível. Além dos olhos fechados, eu exibia um decote indecoroso graças à camisa aberta até a metade, e o Carlos sustentava um sorriso exagerado. Acordei assustada e aliviada, mas aquilo aumentou a minha aflição. 
Felizmente, ou não, a minha espera apreensiva foi abreviada quando, um dia, quase uma semana antes da data combinada, Juninho chegou em casa na companhia do Lelo, filho do pintor. Eu os surpreendi na porta da sala, carregando casa adentro a enorme tela, que pareceu-me ainda maior do que eu havia imaginado.
— Pai! — gritou, Juninho, assim que colocou os olhos em mim. —Vem pra sala que tenho uma surpresa.
Eu estava estancada na porta da cozinha para a sala quando o Carlos tocou meu ombro e os meninos desviraram o quadro, com certa destreza, numa espécie de coreografia ensaiada. Num reflexo, coloquei as mãos sobre a boca e fiquei encarando a pintura a óleo sobre a enorme tela de 120 por 80 centímetros. Na imagem, tão cheia de cores e detalhes que a faziam assemelhar-se a uma fotografia, estava Carlos ao lado dela, uma mulher que não reconheci de pronto. 
— Gostou, mãe? — Ele sorria largamente. — Fala alguma coisa.
Não falei nada, nem a mão da boca eu tirei.
— Ela tá emocionada — disse o Carlos, debochado, enquanto aproximava-se da tela.
Fiquei com receio de chegar perto demais, mas o Juninho começou a agitar a mão em chamamento, pedindo que eu fosse até ele para receber o presente. Quanto mais me aproximava, mais aquela imagem se mostrava destoante do que conhecia como eu. Quando estava tão perto a ponto de sentir o cheiro da tinta, desviei o olhar e virei para o Carlos, tentando descobrir em sua feição de admiração e contentamento se ele estava fingindo naturalidade para não magoar o Juninho e não desrespeitar o Lelo ou se ele estava sendo um imbecil sincero. Até que seu comentário fez-me crer que ele estivesse zombando de mim. 
— Mas isso está uma maravilha, filho. —Deu um cutucão no meu braço. — Igualzinho a gente, amor. Impressionante.
Eu achei mesmo impressionante porque o Carlos a óleo estava realmente idêntico ao real, perfeito, o que me fez ficar ainda mais cismada com a discrepância da minha imagem retratada ali. Não que eu estivesse feia, com a cara sem graça, havia até um sorrisinho simpático, o meu cabelo estava arrumado, o problema é que na pintura eu parecia... velha. 
Quando meu filho perguntou mais uma vez se eu havia gostado do presente, só consegui dar um leve sorriso e abanar a cabeça. Comecei então a pensar em qual seria o destino da tal tela, que logo no início eu havia decidido pendurar na sala de jantar. Logicamente, não poderia recusá-la, dizer que estava mal pintada, esbravejar a minha pouca semelhança com a figura retratada ou jogá-la fora. A melhor solução seria colocá-la em um lugar fora da minha vista, um cômodo onde eu não precisasse ir diariamente, mas logo Juninho revelou que sua intenção era outra. 
Com a ajuda do Lelo, ele subiu até o andar de cima, entrou no meu quarto e pendurou o quadro sobre a cabeceira da minha cama, onde antes havia uma bela paisagem das montanhas. E não pude dizer nada.
Quase não dormi aquela noite e, a partir da manhã seguinte, sempre que ia arrumar os lençóis, ficava analisando a obra de arte que havia deliberadamente invadido o meu quarto, reparando nas rugas nos cantos dos olhos, nas olheiras pronunciadas e no rosto caído. 
Um dia, Carlos surpreendeu-me encarando a pintura.
— Cacá, você não me achou estranha?
— Estranha? No quadro?
Assenti com a cabeça e uma espécie de gemido afirmativo.
— Está linda, amor. Como sempre.
Aquela resposta pareceu-me muito vaga, e eu insisti.
— Mas não tem nada de errado? Essas... — disse, apontando na direção dos olhos.
— Essas o quê?
— Rugas, Carlos, estas rugas.
— Qual o problema? Eu também tenho várias. 
E foi assim que terminou aquela conversa. E foi ali que começou o meu envelhecimento. Carlos foi para a cozinha e eu fui para o banheiro. Acendi a luz do teto e aquela luminária que fica em cima do espelho. Aproximei bem o rosto com certo receio de olhar diretamente onde as marcas do tempo haviam sido sinalizadas naquela tela maldita. Foi quando as vi, as rugas, os pés de galinha a adornar meus olhos terrivelmente tristes e assustados. 
Sai do quarto evitando encarar o quadro, com raiva dele e das rugas recém-descobertas. No dia seguinte, após a infeliz contemplação da obra, contemplei, com igual melancolia, a imagem real diante do espelho do banheiro, constatando que as bochechas caídas que davam um ar cansado à minha imagem a óleo também estavam presentes na minha cara, em carne e pelancas. 
Em doses homeopáticas, fui descobrindo que a mulher na tela, com um sorrisinho simpático, era muito semelhante a mim mesma. Até que descobri que éramos idênticas. 
Não sei se por coincidência ou maldição, passei a sentir-me mais cansada, as costas passaram a doer com frequência, os joelhos começaram a ranger ao descer escadas e a vista, de repente, exigiu lentes de leitura. Já o Carlos continuava o mesmo, com as mesmas rugas pinceladas no quadro que eu já conhecia.
Até que chegou o momento que, já conformada e habituada às minhas marcas de envelhecimento, parei de acender a luz em cima do espelho do banheiro e a analisar tão meticulosamente o meu rosto marcado pela passagem dos anos. Deixei também de encarar o quadro sobre a cabeceira todas as vezes que esticava os lençóis na cama. 
Hoje pela manhã, dez anos após o quadro ter sido pintado, eu estava arrumando a cama quando percebi que a moldura estava toda empoeirada, fui passar um pano e acabei encarando a pintura, como há muito tempo não fazia. Ali, em óleo sobre tela, com um sorrisinho simpático, ao lado do Carlos, com as cabeças próximas, mas não encostadas, percebi que eu até que estou bem para a minha idade. Senti-me até remoçada.
 

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