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Apaga a Luz

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O tilintar das pedras de gelo mergulhadas no whisky preenchia o vazio da resposta ausente.
“Então, Oscar, quem era o garoto?“, insistiu o senhor James.
“Garoto?” Ajeitou-se na poltrona, constrangido, as mãos sem encontrar apoio. 
“Sim, em sua casa.” Fez um gesto impaciente com a mão. “Era uma visita familiar?” Os cubos de gelo batendo uns nos outros, um longo gole no destilado, uma incômoda espera pelo desenrolar da conversa.
O senhor Oscar pigarreou e descolou-se do encosto, de modo a aproximar-se do amigo. “Mas o senhor também o viu?”
“Sim. Pois ele esteve aqui.”
“Aqui?”, perguntou, apontando o chão repetidamente. 
“Sim, há poucos dias. Depois, o vi entrar em sua casa.”
O silêncio mais uma vez tomou conta da sala, e o senhor James fitou seu interlocutor por tanto tempo e com tanta persistência, que este foi impelido a uma confissão.
“Eu não sei o que é” — murmurou.
“O quê? O garoto?”
O senhor Oscar assentiu com a cabeça.
“Mas, então ele não o encontrou?”, perguntou o senhor James, apoiando o copo sobre a pequena mesa.
“Encontrou”, sussurrou. Olhou para os lados, como se quisesse certificar-se de que mais ninguém o ouviria. “Encontra-me todas as noites, ao pé da minha cama.” Deu uma olhadela por trás do ombro e aproximou-se, ocupando a borda do assento. “Sem que eu lhe abra a porta.”
O ouvinte curvou-se também, reduzindo a poucos centímetros a distância entre eles, calado, olhar fixo, como se a esperar por informações mais precisas. 
“Bem, só posso crer que ele seja uma espécie de aparição”, disse o senhor Oscar, a voz baixa, a cabeça balançando lentamente.
Foi então que o senhor James explodiu em uma gargalhada tão escandalosa quanto inoportuna, que acabou por tirar o amigo da poltrona. A passos largos, com os olhos voltados ao assoalho, o senhor Oscar foi caminhando em direção à saída. Porém, antes que se pusesse porta afora, o senhor James apressou-se a refreá-lo e a desculpar-se:
“Não me entenda mal, não foi minha intenção ofendê-lo, caro Oscar”, disse, dando batidinhas leves no ombro do amigo. “Foi certamente uma reação nervosa. Esses assuntos sobressaltam-me. Mas, vamos, sente-se e me conte essa história direito.” Apontou a poltrona ainda quente, encorajando-o a reacomodar-se. “Insisto que aceite um pouco de whisky.” Dirigiu-se ao carrinho de bebidas, balançando as mãos em gestos exaltados.  “Este destilado é especial, feito com trigo vermelho, doce. Precisa prová-lo.”
Ainda em pé, com os braços caídos rentes ao corpo, o senhor Oscar ergueu as sobrancelhas e ficou observando, por cima dos óculos, a afetação do amigo. Quando o senhor James estendeu-lhe o copo, meneou a cabeça e deixou escapar algumas palavras incompreensíveis, talvez porque falasse consigo mesmo. Aceitou o destilado e o insistente convite para sentar-se. Tossiu, limpando a garganta, tomou um gole e bateu a língua repetidamente no céu da boca como se tentasse decifrar o sabor e segurá-lo por mais tempo.
“Eu provavelmente também caçoaria de mim se não me encontrasse em minha posição. O que acabo de afirmar ao senhor é, com toda a certeza, algo que foge ao meu entendimento e que nunca imaginei enfrentar. Mas esta parece-me a única explicação”, disse, o senhor Oscar, repousando o copo na mesinha lateral. Passou as mãos pela calça e as apoiou nos joelhos. “Vou contar-lhe o que vem ocorrendo, não porque assim me solicita, mas porque apreciaria a sua opinião.”
O senhor James retomou seu assento, olhos pregados no amigo, já mais entusiasmado que trocista, curioso para ouvir o relato sobre a aparição do menino desconhecido.
“Faz quase uma semana. Eu estava na cama, dormindo, quando despertei num estalo, confuso, como é usual nesses despertares súbitos, sem a certeza se havia ouvido um estampido ou se ele havia ocorrido dentro do meu sonho, um estrondo tão forte que me arrancara do repouso. Mantive-me ali, deitado, ouvido aguçado, até que decidi que havia sonhado com o tal barulho. Quando mudava de posição na cama, notei um vulto na contraluz que vinha da janela com as cortinas corridas além da metade. Por alguns segundos, paralisei, estava certo de que se o vulto viesse para cima de mim, eu nada teria a fazer a não ser gritar com toda a força dos meus pulmões. Quando recobrei os movimentos, coloquei os óculos e, com as mãos apressadas e levemente trêmulas, acendi a vela que mantenho na mesinha ao lado da cama, um olho nela, outro na figura imóvel, desejando que a claridade desfizesse a visão equivocada, mas, a cada instante, ela revelava-se mais incontestável. Quando se fez a luz, revelou-se ao pé da minha cama, bem ali, um menino, encarando-me, imóvel como uma estátua.”
“O tal que veio aqui?”, interrompeu o senhor James.
“Creio eu que sim. Que outro haveria de ser? O senhor acaba de declarar que o vira entrar em minha casa.”
“Sim, sim”, balbuciou. “Mas era um garoto. De carne.” Mexeu-se na poltrona de forma tão enérgica que a madeira rangeu. “E osso.”
“Minha primeira impressão também foi essa, meu caro”, concordou o outro, balançando a cabeça.
O senhor James ergueu as sobrancelhas e sustentou o silêncio por alguns segundos, a testa enrugada, o dedo batendo insistentemente no braço da poltrona. “Se eu o vi entrar em sua casa naquela tarde, o senhor deve ter deixado a porta aberta.” Umedeceu os lábios, procurando as melhores palavras. “O que o faz supor que ele não era um simples garoto intruso, mas sim uma...” Molhou os lábios novamente e demorou-se, como se não encontrasse a expressão mais justa. “Assombração?”
“O senhor compreenderá se me deixar continuar”, respondeu, com impaciência nos gestos e na voz, já sem importar-se com o rigor dos modos. “Continuando, ainda acreditando ser apenas um garoto, sentei-me na cama, desconcertado, e questionei quem era, o que fazia ali e como havia entrado. Ele manteve-se mudo. Então, coloquei-me em pé e aproximei-me, chegando bem perto, agachei-me para que meus olhos alcançassem a altura dos seus, e foi quando ele os cravou em mim, como se quisesse sugar minha alma de dentro do meu corpo. Engoli em seco e sustentei seu olhar mesmo que eu não quisesse. E eu lhe garanto que não queria. Foi então que ele abriu a boca de tal forma grotesca que caberia a minha cabeça inteira dentro dela. Não sei o que fiz primeiro, se gritei ou se corri, só sei que em poucos passos eu estava na sala, dando voltas a esmo, repetindo a mim mesmo que aquilo não era real e que logo eu despertaria em minha cama, suado e desafogado daquele horror. De súbito, estaquei. Começando a crer em minha súplica desesperada, pensei que talvez eu não estivesse de fato acordado, que aquilo bem poderia ser apenas um sonho ruim. Isso posto, de nada adiantaria todo aquele alvoroço, bastaria esperar que o tormento acabasse. Ainda não tão convencido a ponto de retornar ao quarto, sentei-me no sofá, os pés juntos e os braços cruzados, imóvel, quase não respirava. Foi então que a criatura reapareceu, vindo em minha direção como se flutuasse. Ela vinha se aproximando e eu ia me afastando, até chegarmos os dois, quase juntos, novamente ao meu quarto. Joguei-me sobre a cama e espremi meu corpo contra a cabeceira, suando por baixo do pijama. Então, ele buscou a atenção de meus olhos e apontou para a janela.”
“Janela? Que janela?”, perguntou o senhor James, interrompendo mais uma vez.
O senhor Oscar levantou-se da poltrona, foi até a janela e, dali, indicou a de sua própria casa a alguns metros além do gramado.
“Aquela.”
O senhor James postou-se ao lado do amigo, ambos encarando a casa vizinha, imóveis, as respirações suando o vidro.
“Então ele apontou para cá, para a minha casa?”, perguntou o senhor James, vagarosamente, sem despregar os olhos lá de fora.
 “Sim, foi o que eu pensei.”
“E ele disse alguma coisa?”
“Nem uma só palavra”, respondeu o senhor Oscar, balançando a cabeça em negativa. “E para o senhor? Ainda não me contou o que ele disse quando esteve aqui procurando por mim.”
“Não falou nada também”, respondeu, erguendo os ombros. 
O senhor Oscar franziu o cenho e virou-se para o amigo, visivelmente incomodado. “Nada?”
“Naquele dia, ainda era dia claro, eu ouvi batidas na porta da frente e, quando abri, ele estava lá, pouco além da soleira, parado, encarando-me de um jeito tão sisudo que ouso dizer que era quase agressivo. Antes que eu pudesse perguntar o que queria ali, ele rodou nos pequenos calcanhares e caminhou até a porta de sua residência. Sei que entrou, pois pude vê-lo passar pelo balcão lateral. Suspeitei que fosse algum parente do senhor.”
“Foi só esse o contato que teve com ele?”
“Só.” 
Incentivando o amigo a continuar com seu relato, o senhor James regressou à poltrona. “Prossiga, prossiga”, encorajou, indicando com um gesto o assento à sua frente.
Devidamente reacomodado, o senhor Oscar retomou de onde havia parado: “Bem, assim que ele apontou a janela, endireitei meu corpo, lentamente, ergui a cabeça o mais alto que pude, espichando bem o pescoço, e espiei dali de onde eu estava, sem coragem para locomover-me diante de tão estranha presença. Não vi nada além do que deveria ver, esta casa. Distraí-me, o olhar buscando algo incomum além da vidraça, e foi quando ele desapareceu. Deixei a cama, escorregando pela borda, um pé após o outro, com cautela, alcancei a janela e espreitei novamente lá fora. O mesmo, nada de anormal ali. Ainda sem convicção de que aquilo tudo não tivera sido um pesadelo, deitei-me na cama, cobri-me até a cabeça e fechei os olhos, intencionando dormir ou acordar. Não sei qual deles ocorreu, nem quanto tempo demorou, só sei que era dia claro quando despertei, com o pensamento ainda preso à aparição.”
Ao final do relato, o senhor James agarrava o braço da poltrona com tanta força que era de se supor que havia deixado as marcas dos dedos na madeira. “E o garoto não voltou mais?”
“Pois voltou. Nas quatro noites subsequentes, às três horas da madrugada, sempre ao pé da minha cama, apontando para a janela do meu quarto na direção desta casa.” Fez uma pausa. “Já estava dando por certo que a criatura não seria nada mais do que mero fruto de minha imaginação, um estranho pesadelo recorrente, mas agora...” Fitou o amigo, deixando a frase inacabada.
“Bem, não sabemos se o menino é o mesmo”, disse o senhor James, hesitante. 
“Vejamos. Ruivo, olhos azuis, sardento, nariz arrebitado, roupa azul.” O senhor Oscar fez uma breve pausa, aguardando uma confirmação. Os olhares desencontraram-se. De modo impaciente, levantou-se. “Mais ou menos desta altura”, disse, batendo a mão espalmada na cintura.
“Não pude ver direito, assim em detalhes, foi muito rápido”, justificou-se erguendo os ombros.
Com a testa franzida, a face tão enrugada de diminuir os olhos, o senhor Oscar sentiu crescer dentro de si uma estranha sensação de desconfiança. “Bom, vejo que não pode me ajudar, caro James.” “Não que eu tenha vindo atrás de explicações, uma vez que eu nem imaginava que a assombração também tivesse vindo importuná-lo. Quem sabe, sonhamos os dois, compartilhamos fragmentos de um sonho ruim.” Bateu de leve as palmas das mãos uma na outra, levantando-se em seguida. “Vou para minha casa, que é hora.”
O senhor James não fez menção de oferecer mais alguns minutos de sua atenção, nem mais dois dedos de destilado ou de prosa que fosse. Ficou apenas observando o amigo passar pela porta e afastar-se.

Dois dias se passaram sem que qualquer palavra ou aceno fossem trocados entre os dois. Até que o senhor Oscar voltou a aparecer na residência vizinha. Nos cumprimentos à soleira da porta, o senhor James revelava um incômodo, o senhor Oscar, um ar misterioso, distinto de outrora. Este entrou e permaneceu em pé no centro da sala, com os olhos rondando cada centímetro do aposento, se alongando para o cômodo adjacente. 
“O senhor nunca vem pela manhã”, disse o anfitrião, com um quê de desagrado pesando em sua voz.
“Na noite passada ele finalmente falou comigo”, declarou o senhor Oscar, de supetão.
“Ele, o senhor quer dizer o garoto?”
“Sim.”
“Falou? Mas falou o quê?” A voz oscilante, própria de quem não está certo de ansiar por uma resposta.
“Na verdade, não foi bem ele quem falou.”
O senhor James franziu a testa, o olhar confuso.
“Na última noite, ele deixou o pé da minha cama e aproximou-se da cabeceira, o que provocou em mim um recuo instintivo, pois nunca mais havíamos nos permitido tão estreita distância desde que eu descobri não ser ele um simples garoto.” O senhor Oscar caminhava pela sala e gesticulava, com ar quase professoral.  “Então, ele arriscou uma nova aproximação, e eu acabei permitindo que ele se acercasse, chegando tão perto que pôde assoprar dentro da minha boca. Foi como se ele soprasse uma palavra para dentro dos meus pulmões.”
“Uma palavra dentro dos seus pulmões?”, perguntou o outro, contorcendo o rosto em repulsa.
“Sim, uma palavra que eu proferi no instante em que ele fechou a boca.” Estudando a feição de seu ouvinte, o senhor Oscar disse lentamente, articulando devidamente cada uma das duas sílabas: “Po-rão.”
O senhor James arregalou os olhos e, logo em seguida, esforçou-se para relaxar os músculos da face, esboçando um sorriso que descortinou seus dentes amarelados. 
Permaneceram mudos, olhares sustentados. O silêncio foi crescendo, preenchendo cada centímetro da sala fria, até ser quebrado, como um cristal jogado ao chão:
“Diga-me, caro James. Esta casa tem um porão?”
“Porão?”, repetiu, à iminência de gaguejar. “Não, não tem.”
“Não tem?”
“Bem, tem, tinha. Foi fechado há alguns anos. Um espaço condenado, inútil, cheio de umidade”, respondeu, dissimulando indiferença.
“Ah, sim. O mofo.” Esticando o pescoço para além do vão da sala, o senhor Oscar espiou o corredor. Virou-se num repente, provocando um leve tremor no corpo do amigo. “Bom, não quero mais ocupar o tempo do senhor. Até breve, meu caro, muito breve.”. 

Quando a porta fechou-se atrás do inoportuno visitante, o senhor James permaneceu imóvel por alguns instantes, cravando os dentes no dedo indicador destro para não gritar, então, bateu o pé com força no chão, transferindo ao assoalho de madeira toda a sua cólera. O som reverberou no andar abaixo dele, subterrâneo, um salão úmido, com paredes mofadas, onde, entre tonéis de carvalho francês, uma mulher de cabelos vermelhos, acorrentada à parede, definhava. Olhos perdidos, faltava-lhe forças e consciência de sua situação para clamar por socorro, para gritar por ajuda antes que fosse novamente mergulhada no líquido de cor âmbar, dando sequência a um ritual diário que se arrastava por horas. 
Sem que nada justificasse tal comportamento, a mulher ruiva ergueu um pouco o corpo e encarou a porta, vislumbrando o garoto, ali, a poucos metros, os olhos complacentes. Era a primeira vez que ela via a aparição. E era a primeira vez que a aparição sorria. 

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